Thursday, February 21, 2008

SALAZAR, O ABANDONO


«Hão-de dizer muito mal de mim. É por isso que eu dou importância à publicação dos livros brancos: explicarão como se defenderam os direitos portugueses, e o cuidado e o pormenor com que isso se fez.»

Por entre o rol dos discursos de Salazar, existe uma página particularmente significativa no que se refere à sua capacidade de prever o futuro. Foi escrita em 1958, quando já trinta anos tinham corrido sobre o momento em que tomara conta da pasta das Finanças para não mais deixar o governo do País. Mas poderia tê-lo sido hoje, tão actual e lúcida se revela no julgamento dos homens e no abandono a que a história o havia de condenar post mortem.
Refiro-me ao seu discurso de 1 de Julho de 1958.
Como é sabido, Salazar nunca improvisou o pensamento ou a palavra.
Meditava, concebia, compunha em silêncio, e lia depois em público o que havia elaborado na intimidade do seu gabinete. De onde o rigor terminológico e doutrinário das suas intervenções, e também da peça que nos importa reter aqui.

Naquele texto, após aludir ao problema da longevidade dos governantes e considerar que a questão se colocava em Portugal relativamente a si próprio, o então Chefe do Govemo rematava com duas importantes passagens do Novo Testamento, ambas extraídas da paixão de Cristo: o abandono do Mestre e a traição de S. Pedro. “Muito desejara eu que todos os que são guindados às culminâncias das honrarias e do poder e o julgam sua pertença e direito, ou alguma vez gozaram dos favores da multidão, meditassem um pouco a paixão de Cristo como é descrita em qualquer dos Evangelhos. Há sobretudo dois pontos dignos de reparo.” O primeiro – escreve – é o que se refere à apoteose, ao verdadeiro triunfo popular de Cristo aquando da sua entrada em Jerusalém, no domingo de Ramos, e à sua desgraça escassos dias depois, entregue que foi a uma morte desonrosa na cruz. “Em quatro dias – anota Salazar -, que tantos são os que vão de domingo a quinta-feira, secaram as flores, murcharam as palmas e os louros, calaram-se os hossanas e os vivas e até as gentes miraculadas não consta que tornassem a aparecer.”

O segundo passo digno de registo diz respeito a S. Pedro, caput dos Apóstolos, clara “emanação da natureza”, homem “aberto, simples, leal, firme na amizade como uma rocha”, sobre quem o Mestre quis edificar a sua igreja. Suspeito na noite mesma da detenção do Senhor de fazer parte da sua gente, havia de negar três vezes que o conhecia, num gesto que ficou para sempre como “o protótipo da traição, a traição pura”.

E Salazar prossegue: “Ainda se pode admitir que a amizade houvesse diminuído, que a fé se entibiasse, que o futuro se deparasse incerto quanto à aceitação da nova doutrina. Mas o conhecimento pessoal do Mestre, esse era um facto incontroverso.” E por isso Cristo há-de ter sentido uma “tristeza infinita”, a tristeza que inunda “uma alma acusada sem provas e condenada inocente.”

Temos aqui, por conseguinte, num único fragmento de texto, duas faces da mesma moeda: o abandono e a traição.
Duas fortes, irredutíveis realidades. Qual o significado delas? Qual a oportunidade do seu emprego naquela conjuntura?
Pode afirmar-se, sem margem para erro, que o tema da deslealdade humana vinha ocupando o espírito de Salazar desde há muito. Revela-o, quanto à inconstância das multidões, uma entrevista concedida a António Ferro em plena época carismática, na qual, respondendo a uma pergunta do jornalista sobre porque é que não era mais acessível à multidões que o vitoriavam, Salazar afirmava não poder adular o povo sem ir contra a sua consciência e que o Estado Novo, sendo embora um regime popular, não era todavia um governo de massas.

Revela-o de igual modo uma frase dita a Christine Garnier acerca da volubilidade da opinião pública: “Os que desejam aplaudir-me hoje hesitariam em desviar-se de mim se outra paixão se apoderasse deles?”
Político hábil, bom conhecedor da natureza humana, educado à sombra dos moralistas de outrora – um António Vieira, um Heitor Pinto, um Manuel Bernardes –, Salazar sabia que, valendo as coisas na proporção do que custam e exigindo os grandes ideais grandes renúncias, a lealdade era na vida planta frágil. Lealdade a tudo quanto fosse relevante: um princípio, uma crença, uma instituição, uma pessoa. Lealdade, em última análise, à própria consciência subjectiva, que consiste em descer o indivíduo ao fundo de si mesmo para ouvir a sua voz interior e ordenar-se por ela.

Sabia, por isso, que são muito mais abundantes no mundo os homens de meios que os homens de princípios, os homens de interesses que os homens de ideais, os homens de ocasiões que os homens de convicções.

A grande maioria dos cidadãos serve, com efeito, o poder onde quer que ele esteja, e os poderosos onde quer que os encontre.
Até o próprio S. Pedro.
A atitude de Pedro ilustra uma constante da conduta humana, que é a fuga nos momentos de risco. Se o apóstolo veio a arrepender-se depois e a arrostar pela vida fora com as maiores provações, aquilo que o distingue do ser mediano não é a queda in se, a traição, a infidelidade, mas justamente o contrário – o arrependimento, a contrição.
Ora, a exemplo de todos os bons governantes, Salazar não ignorava esta lei da vida. Sendo os homens como são, sabia que tão logo abandonasse o governo, mediante renúncia, incapacidade ou morte política, alguns dos amigos da véspera, dos colaboradores, dos seguidores, dos aduladores, agindo com reserva mental, ficariam dispostos a colaborar com o novo Príncipe.

Simplesmente, observa-se aqui um fenómeno curioso: à medida que ele próprio se ia pombalizando (no dito de espírito de Afonso Lopes Vieira), à medida que o poder, pela passagem do tempo, se lhe ia convertendo numa segunda natureza, mais a questão da deslealdade humana parecia cativá-lo. É o que induzem os factos, independentemente do juízo que deles se faça.
Senão vejamos.
Em 1958 aborda e espiritualiza o tema no citado discurso de 1 de Julho.
Na década de 60 várias vezes o retoma. Assim, a Pedro Theotonio Pereira afirma que não vai deixar memórias mas que as escrevesse ele e contasse a verdade, relatando o que tinha visto e ouvido.
A Franco Nogueira comenta, num prognóstico claro: “Cheguei ao fim. Os que vierem depois, vão fazer diferente ou vão fazer o contrário e contra mim.”

Significativo é também o episódio da inauguração da ponte sobre o Tejo, ocorrido em 1966. Salazar efectua uma visita prévia à ponte com Arantes e Oliveira e vê o seu nome implantado em letras de bronze nos respectivos padrões. Pergunta ao ministro: “As letras estão fundidas no bronze ou simplesmente aparafusadas?”. Porquê? “É que se estão fundidas no bloco de bronze vão dar muito mais trabalho a arrancar.” E, na sequência, explica aos presentes: a ponte ficou com o nome Salazar por insistência do Presidente da República mas isso “é um erro”: “os nomes de políticos só devem ser dados a monumentos e obras públicas cem ou duzentos anos depois da sua morte. Salvo os casos de Chefes do Estado, sobretudo se estes forem reis, porque então se está a consagrar um símbolo da Nação.” Após o que vaticina, apontando com o indicador: “O meu nome ainda há-de ser retirado da ponte. Por causa do que agora se fez, os senhores vão ter problemas.”

Gonçalo Sampaio e Mello
Jurista
Excerto do Texto Públicado na Revista Magazine Grande Informação

(Mas que belo texto Senhor Professor!)

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