Ao Prof. Gonçalo Sampaio e Mello
(este é o retrato que causou esta notícia)
Postei aqui, um dia, parte de um dos mais belos - e consequentemente um dos meus preferidos - artigos que li sobre Salazar.
Hoje publico a continuação.
O texto é maravilhoso, uma obra de arte. Não lhe fico indiferente.
Primeiramente pelo autor, um dos meus Mestres, a quem, como ensinou e escreveu o Professor Pedro Soares Martinez, devem ser prestadas as devidas homenagens assinalando a divida de gratidão, como discípulo que beneficiou dos seus ensinamentos.
E depois porque o texto está escrito de uma forma magnifica.
Trata-se de um juízo histórico muito real, muito racional, mas ao mesmo tempo muito humano.
O texto (que encontrei num jornal comemorativo do centenário do nascimento de Salazar - tem portanto 20 anos!), não traiu as minhas expectativas. Pelo contrário, o Mestre, como que justificando a razão de ter ocupado esse seu lugar, cumpriu e fez aquilo que dele se esperava: surpreendeu.
Resta-me deixa-lo para que também vós o possais apreciar.
(Aqui fica a continuação do texto antes aqui publicado)
Quer isto dizer que renegava a sua obra? Não. Mas contemplando-se a si mesmo, olhando em redor, conhecendo a terra e o meio sobre que governara durante 40 anos, Salazar havia previsto o seu fim e a sentença da História. E tinha razão.
Ter razão é, no juízo mais simples que se conhece, ver as coisas não como parecem, mas como elas são na realidade
Penetrá-las fundamente ab imo pectore. Salazar teve, pois, razão ao prever, por gestos, palavras e atitudes, o seu abandono e fê-lo como Chateaubriand, para além-túmulo.
Mas ocorre perguntar agora: teria previsto o grau, a latitude desse abandono?
É sabido que nas épocas de ruptura da História de Portugal, muitos são os que desertam do lugar onde se encontram e passam para o campo dos vencedores. Em regra, a grande maioria adapta-se ao novo tempo e dos homens públicos, como do povo, parece precária a lealdade. Mas é certo também que os chefes, em Portugal, mesmo depois de cair, sempre tiveram partidários. Poucos, talvez — mas ilustres. (...)
Mas, é lícito sabê-lo: e Salazar? Quem são, quais são os partidários de Salazar?
Tendo orientado os destinos da nação por quatro décadas, entre 19(28) e 1968, reunido à sua volta figuras eminentes da política, da economia, da ciência, da sociedade, da cultura, conseguindo obter, enquanto vivo, o apoio de grande parte do País, lutando galhardamente até ao fim por uma obra colectiva que o transcendia, recusando para Portugal, o papel de mordomo de interesses estrangeiros — Salazar deixou atrás de si uma herança que pode ser contestada mas não ignorada. Uma herança política, doutrinária e moral.
Mas se existe herança — onde estarão os herdeiros?
Difícil é dizê-lo.
O tempo próximo diluiu a memória das coisas, um véu cobriu a vida pública e entre os amigos, os companheiros, os correligionários, os seguidores, os aduladores, os muitos que andaram pêlos labirintos do Estado Novo, ninguém aparece, com efeito a reclamá-la.
Homens que exerceram funções de governo, que ocuparam cargos de responsabilidade, que serviram na administração pública, no Exército, na diplomacia, na magistratura, no parlamento, na câmara corporativa — desapareceram: calando uns, traindo outros, dissimulando quase todos, numa deserção dir-se-ia que completa, num oportunismo político generalizado. Um houve que guardou silêncio prudente, à espera de ganhar trinta dinheiros: outro negou o que afirmava, passando a afirmar o que negava; outro ainda, político até à medula, correu a louvar os poderosos ou a inscrever-se num partido qualquer, desde que viável; e apareceu até quem, senhor de boa memória, quisesse reviver a fábula de Pedro sobre o burro que, um dia, vendo o leão, rei dos animais, já moribundo, — por ele passou ostensivamente e lhe deu um coice.
De súbito, havia-se feito para surpresa geral, uma descoberta: ninguém tinha afinidade política ou espiritual com Salazar, ninguém tinha «mentalidade de herdeiro», e portanto a herança estava jacente. Bem puderam a calúnia, a má-fé e a vesga paixão ideológica deformar à vontade episódios, ideias e figuras, que, em verdade, ninguém contestou fosse o que fosse ou mandou ad rem quem o fazia. Importava era perder os anéis, para conservar os dedos.
Mas, perguntar-se-á: não houve excepções à regra? Não houve quem tivesse ficado no seu posto?
Com obra notória, de vulto, houve uma, com efeito: a de Franco Nogueira — homem que não era, aliás, nem nunca fora, do regime, tendo apenas servido o País, patrioticamente, numa conjuntura internacional extremamente desfavorável. E outras haveria, por certo. Mas quantas? Quais?
Salazar, escrevendo além-túmulo, tinha razão. Neste reino de vira-casacas e novos-ricos da soberania que é o Portugal de hoje, o que mais importa é ainda meditar na atitude de Pedro e na paixão de Cristo. Elas permitem, entre outras coisas, recordar a cada homem uma grande verdade: que ele não passa de uma hora na história e tudo é efémero sobre a terra. Que, portanto, de pouco lhe vale ser trânsfuga. Salazar estava certo. Velhas mas proféticas palavras.
Gonçalo Sampaio e Mello
in Dossier Semanário, 27 de Abril de 1989
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