Palavras proferidas pelo Director da Faculdade de Direito, Doutor Afonso Rodrigues Queiró, no funeral do Doutor António de Oliveira Salazar, em 27 de Julho de 1970.
SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA
SENHOR PRESIDENTE DO CONSELHO
SENHORES VICE-PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA NACIONAL E PRESIDENTE DA CÂMARA CORPORATIVA
SENHORES MINISTROS, SECRETÁRIOS E SUBSECRETÁRIOS DE ESTADO
SENHORA VICE-REITORA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES
Não sei desde quando vem sendo praxe académica usarem os decanos das Faculdades de Coimbra da palavra na circunstância do enterramento dos seus professores, para exaltarem a sua personalidade e celebrarem seus merecimentos e suas obras; sei apenas que ora me apetece infringi-la, a essa praxe, tanto excede os meus dotes desempenhar-me adequadamente da obrigação de o fazer em relação à figura insigne de professor que foi o Doutor António de Oliveira Salazar.
Creio, aliás, que, em alturas como esta, se deveriam omitir palavras profanas, que mais nos fazem reparar nas coisas precárias e caducas da existência terrena dos homens do que meditar nas eternas e transcendentes para que o supremo transç da morte inevitavelmente aponta.
Sem timbre na minha voz nem vigor no meu verbo que me elevem à altura do encargo de traçar aqui o perfil do Homem, em toda a sua grandeza, direi simplesmente, em dois apontamentos, muito breves, do professor — um professor que parecia, em Coimbra, pela austeridade da vida, pela simplicidade quase monacal dos hábitos, pela autoridade moral, pela plena dedicação e amor às tarefas do espírito, pelo equilíbrio do pensamento e da acção, pela dignidade do porte, pela seriedade em tudo posta, um clérigo-doutor que, tendo vivido e ensinado séculos antes no Studiutn Generale, miraculosamente houvesse transposto os sucessivos tempos secularizantes para, em pleno século XX, servir de paradigma a universitários, de exemplo a estudantes e de modelo a todos.
Ora sucedeu que esse professor o foi de um feixe de disciplinas que imediata ou indirectamente tinham que ver com os problemas mais candentes da existência colectiva do nosso País nos anos vinte e seguintes, quais eram principalmente, como toda a gente sabe, o da situação caótica das suas finanças, o da carência de um mínimo de infraestruturas, o do atraso da sua economia e o da desordem política e social; e que o seu ensino delas — designadamente da Ciência das Finanças, da Economia Política e da Economia Social — não fora teórico e conceptualista, racionalista e livresco: fora vivo e aderente às realidades nacionais, constantemente por ele invocadas para desmentir ou confirmar teses e doutrinas.
Quer dizer: a Escola preparou o estadista em que, passada uma década, pouco mais ou menos, sobre o início da sua docência, veio a transformar-se o professor. As soluções que, primeiro na pasta das Finanças e depois na chefia do Governo, fez consagrar nas leis e na diuturna acção política e administrativa, tinha-as ele perfilhado já nas suas aulas desde que em Coimbra sucedera a Marnoco e Sousa no ensino das disciplinas econó-mico-sociais da Licenciatura em Direito.
De tal modo os cursos de Oliveira Salazar haviam sido já, em si, um projecto de acção política, Logos e Praxis entrelaçados e conviventes, de acordo com a ideia de que «a ciência é uma forma de actuar», que mal daria por que ele passara da cátedra de Coimbra para a cadeira curul do Terreiro do Paço quem pudesse figurar-se a ouvi-lo, sem estar ao corrente desse facto, a fazer certas das suas lições universitárias ou a ler os preâmbulos e exposições de motivos de algumas das suas grandes reformas legislativas ou o texto de determinados discursos seus, sobre temas politico-sociais.
É que, na verdade, Oliveira Salazar, uma vez no Governo, continuou igual a si próprio: perante o grande auditório do País, continuou a ser o professor que fora, ante os seus alunos, atentos e maravilhados, nas aulas.
Aliás, não foram apenas a dignidade da palavra e a objectividade imperturbável e intransigente das ideias que fizeram compreender e sentir a toda a gente que o professor universitário se transferira, sem se transmudar, de Coimbra para Lisboa.
Levou também consigo, para o aplicar e fazer observar no governo e na administração pública, sem desfalecimentos, todo o cabedal daqueles princípios deontológicos que, ele e outros grandes Mestres da Faculdade de Direito, seus contemporâneos, tinham definitivamente firmado e feito triunfar no seio dela, reagindo, obstinada a quase heroicamente, contra as expressões mais degradantes da corrupção que havia penetrado na própria Universidade, a partir da sociedade política da época da baixo liberalismo.
Mais do que professor, entendido como especialista ou bom conhecedor de certa ou certas matérias, o Doutor Oliveira Salazar foi, porém, um filósofo das coisas sociais e políticas — e foi como tal que ele veio a ser governante excepcionalíssimo. Não é o professor de Finanças, de Economia e de Direito Fiscal que marcou uma época na vida política da Nação, por grandes e benéficas que tenham sido, e foram-no, realmente, no consenso geral, as consequências da sua acção na governação do País, à frente do departamento da Fazenda. Marcou uma época na nossa História, de preferência, o filósofo que se encobria na figura do professor universitário — bastando que o Destino lhe proporcionasse a ocasião, para o poder revelar, à frente do Executivo. Platão disse, no diálogo da República, que seria bom qde os filósofos se tornassem reis ou que os reis e os príncipes se tornassem filósofos. Verificou-se com Salazar, no nosso País, durante dezenas de anos, este voto. Salazar foi filósofo, porque o ornou a sabedoria, a coragem, a temperança e o espírito de justiça — virtudes cardiais do homem de Estado, como nesse diálogo se defende; foi-o, ainda, na medida em que desprezou a opinião e pôs toda a sua fé no saber e na ciência — e foi filósofo, finalmente, enquanto soube elevar-se à altura da expressão teorética das suas próprias ideias e conceitos sobre o Estado e a governação.
Eis, Senhoras e Senhores, uma das facetas do Homem que vamos deixar aqui, para sempre — a única, repito, que julguei ser do meu dever, na qualidade em que vos falo, pôr muito concisamente em destaque. Esse Homem não morreu. Vive, e viverá, porque subiu e passou definitivamente a pertencer ao mundo imperecível do Espírito.
Disse.
(Publicado no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol.46, 1970, pág. 220 e ss)
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