O sociólogo alemão diz que o aparecimento de líderes populistas de extrema-direita, como o austríaco Haider, é uma das variantes do futuro, na Europa.
Ulrich Beck acha que o sex appeal da ideologia liberal está a diminuir e adverte sobre os reflexos nacionalistas e étnicos libertados pela globalização. O «pensador da modernidade» toma posição sobre o conceito de Leitkultur (cultura dominante) alemã, a possibilidade de proibir os ultradireitistas do Partido Nacional Democrático - NPD - e a imigração. Defende o compromisso de cidadania, na sociedade civil, e é um assessor muito procurado, que não se deixa manipular nas operações de relações públicas dos políticos. Aos 56 anos, tem essa combinação de erudição, capacidade de entusiasmo e gosto pela vida, que faz de alguns alemães personagens atraentes. Recebe-nos, num dia feriado, no seu gabinete do Instituto de Sociologia. Vestido com roupa desportiva, o professor trabalha num edifício deserto. Ao chegarmos cedo demais, encontramo-lo a procurar algo para comer, numa gaveta. O resultado da busca é um prato de amendoins que desaparecem durante a conversa.
VISÃO: No recente livro de entrevistas, Freiheit oder Kapitelismus (Liberdade ou Capitalismo), diz que os partidários da globalização estão na defensiva. Em que nota isso?
ULRICH BECK: A globalização é um termo nebuloso, um conceito complicado, em que cada um empacota aquilo que considera especialmente negativo e pretende refutar. Por trás do conceito de globalização, é costume ver uma ideologia neoliberal do domínio do mercado mundial, uma lógica capitalista que tende a reduzir a política e a democracia, e a organizar todos os domínios segundo o modelo económico. É muito importante distinguir entre «globalismo» e «globalização». (Globalismo é uma ideologia, é a ditadura neoliberal do mercado mundial. Globalização é uma palavra inventada para designar o processo de superação dos contextos nacionais que afecta os fenómenos políticos, sociais, culturais e económicos). A ideologia do globalismo ocupa uma posição central, mas muitas coisas na nossa sociedade não se limitam ao contexto do Estado nacional. Temos experiências e biografias que já não respondem ao padrão da identidade nacional. A reacção a tudo isto pode ser o «antigloba-lismo». Embora a ideologia neoliberal tenha dominado nos anos oitenta e noventa, e também hoje em muitos domínios, há sintomas de que o seu sex appeal ideológico, a sua força de convicção, está a diminuir.
V.: Em que se baseia para dizer isso?
U.B.: Onde quer que se reúna o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, espera-se que os antiglobalizadores se organizem, coisa que fazem com grande eficácia. Os antiglobalizadores conquistaram a tribuna da opinião mundial do mesmo modo que os globalizadores. Quando analiso a simpatia com que este fenómeno é tratado na Alemanha, inclusive pêlos diários conservadores, posso reconhecer, como sociólogo, que a falta de legitimação do neoliberalismo aumenta de forma clara. Aqueles que representam esta ideologia no Banco Mundial ou noutras instituições repetem argumentos que não convencem ninguém nem atingem o público. As instituições que impulsionam a globalização argumentam a partir de um vazio de legitimidade, já que não têm nenhuma autoridade democrática e não sabem responder quando se lhes pergunta em nome de quem falam. Um terceiro aspecto tem a ver com o ponto central do meu diagnóstico. Vivemos numa sociedade de risco mundial. Nos domínios da tecnologia, do meio ambiente e também dos mercados financeiros há muitas circunstâncias imprevisíveis, embora os especialistas julguem poder controlá-las e calculá-las.
V.: É o que descreve em Chernobil Económico? Refiro-me ao seu conceito de um risco qualitativamente novo, que ocorre na segunda modernização e que, pelas suas consequências temporais, espaciais e sociais ilimitadas, ultrapassa o conceito de risco controlável próprio da primeira modernização.
U.B.: Temos visto esse fenómeno nos mercados financeiros, na crise da Ásia e da América do Sul e, em parte, na Rússia. A rapidez com que as correntes de capital fluem de um lado para o outro e abandonam uns países para investirem noutros, implica um risco considerável e tem um efeito político crescente. Por isso se coloca a necessidade de uma globalização responsável, que permita aproveitar as oportunidades e recriar a política para que conserve a sua capacidade de acção face à economia.
V.: Quem são os sujeitos políticos dessa tentativa de moldar a globalização?
UB.: São grupos, em partidos políticos ou em países concretos, são novos movimentos sociais, são também governos e chefes de governo que têm um interesse crescente em não andar segundo a batuta dos actores económicos. Em torno da globalização, produziu-se um conflito entre o transnacional e o nacional. Até agora, temos pensado nos conflitos de classe, no contexto de Estados nacionais, mas agora acontece algo diferente. Por um lado, temos uma certa classe transnacional, elites que impulsionam a globalização. São directores dos grandes conglomerados, são determinados agentes, nos partidos, nos governos e nos ministérios, cuja política responde a um programa de globalização e se dirige à abertura dos Estados nacionais e à liberalização. E são também as organizações não governamentais, que querem realizar uma abertura política transnacional. Contra a globalização temos um grupo heterogéneo, constituído pêlos que se consideram perdedores, incluindo uma parte da elite. Do ponto de vista económico, representam sectores que operavam em mercados nacionais. Na política, os que acreditam que o nacional perde o seu poder devido às redes transnacionais. E também a esquerda, convencida de que a globalização mina o projecto da democracia. E estão os que advogam a recuperação do carácter nacional e até étnico da política.
V.: Falou do «autoritarismo democrático» como forma de reconciliar princípios que se excluíam mutuamente e referiu-se a Tony Blair, como modelo para os ganhadores da globalização, e ao austríaco Jòrg Haider, como modelo dos perdedores. Como funciona esta divisão do trabalho?
U.B.: Na Europa, são os elementos reaccionários, e não os novos projectos, que têm mais oportunidades. O «modelo Haider» aposta na renacionalização e no regresso do factor étnico, mas também se adapta à globalização, ao estar aberto às novas possibilidades técnicas de controlo interno que esta lhe confere. O isolamento da Áustria foi um conflito instrutivo. Não se pode esquecer que o impulso para isolar a Áustria veio da Alemanha e da França, mas não do Reino Unido. A União Europeia quis distanciar-se claramente, o que é muito importante, se tivermos em conta as tendências na Europa de Leste. Por outro lado, os Estados da União Europeia imiscuíram-se na política interna da Áustria e vimos um exemplo fracassado de política europeia transnacional.
V.: Acha que podem aparecer novos Haider na Europa?
U.B.: Creio que sim. Creio que se trata de uma das variantes do futuro na Europa. Se compararmos Haider com o fascismo alemão, vemos que o nacional-socialismo foi uma resposta relativamente sistemática aos desafios da perda de identidade combinada com impulsos modernizadores baseados em premissas fascistas. Haider carece de semelhante concepção sistemática. O que faz é tentar adoptar elementos do globalismo, como, por exemplo, a necessidade de uma reforma do Estado social, e combiná-los com a redefinição da identidade e a revalorização do factor étnico. O debate interno alemão sobre o Cartão Verde - o programa de imigração de especialistas informáticos - mostra as limitações do modelo de Haider.
V,: Porquê?
U.B.: O Cartão Verde põe à prova a tese de Schrõder, segundo a qual a economia que se globaliza tem um programa de acção política e não está interessada apenas na exploração, mas também num desenvolvimento democrático. Schrõder é muito optimista nesta matéria e eu discuti vivamente com ele. No debate sobre a Leitkultur, que decorre agora na Alemanha, surgiu uma coligação entre o Governo vermelho-verde actual e o empresariado. Com os seus interesses cosmopolitas e abertos, o empresariado apoia a abertura do Governo e isso contribuiu para afastar os partidos conservadores. Mas resta ver se se impõe a ideia de facilitar a imigração ao «estrangeiro rentável» ou um conceito cosmopolita, que prevê o reconhecimento do outro como «outro» e também como enriquecimento, e não apenas como um produto da necessidade.
V.: Que entende por Leitkulturl
U.B.: Na Alemanha, existiu uma certa compreensão cultural da nação. O Estado cultural estava em oposição à identidade política e esta característica foi decisiva na catástrofe que a Alemanha causou no último século. A tentativa de utilizar a cultura alemã como uma premissa selectiva para a integração da diversidade está muito arreigada na tradição alemã e não é uma fórmula casual. A definição dos alemães como sociedade civil começou, possivelmente, a ter efeito, pela primeira vez, com o fim da RDA, mas até agora não se transformou numa componente da autodefinição dos alemães num sentido radical, como em França ou no Reino Unido. As contribuições que os alemães deram para a cultura estiveram abertas ao mundo. No século XVII e XVIII, teve lugar uma animada discussão sobre o cosmopolitismo. O conceito de Leitkultur procura negar a relação entre nacionalidade e abertura ao mundo.
V.: Vê perigos nacionalistas noutros países europeus?
U.B.: Há tensões em todos os países europeus. A globalização liberta o reflexo nacionalista. Mas o essencial é até onde estão dispostas a opor-se as elites políticas para faxer com que os processos de abertura beneficiem um número crescente de pessoas.
V.: Que acha da campanha organizada pelo Governo alemão contra a ultradireita, a xenofobia e o racismo?
U.B.: Nos anos noventa, segui, com crescente mágoa, as actividades da ultradireita na Alemanha. A ultradireita não só expressou xenofobia e exerceu a violência, como pretendeu ser portadora de «valores progressistas», como atacar pessoas até as matar, e isso foi aceite pelas elites políticas. Esta situação rompeu-se no Verão passado. Creio que a proibição do NPD seria uma decisão importante, que daria à sociedade o sinal de que existe um limite para a direita. Os ultradirei-tistas não têm a impressão de atentar contra as normas. Sentem-se protagonistas da emancipação. Antes negavam a existência do Holocausto e agora dizem que não bastou matar 6 milhões.
V.: Fala de uma primeira e de uma segunda modernidade. Como se manifesta a segunda modernidade na Europa?
U.B.: A segunda modernidade é a modernidade reflexiva, que se vive a si mesma como problema. Os sociólogos não dispõem dos conceitos adequados para descrever as novas realidades, como, por exemplo, a família. No aspecto normativo, pode dizer-se que a Europa, que foi a descobridora do moderno, verificou que a sua descoberta é um produto deficiente. Devemos actuar como um empresário que constata o fracasso do produto que fabricou e tem que o rever a fundo, não só num discurso europeu, mas também num discurso global transnacional, que inclua os países pós-coloniais, porque estes têm diferentes experiências com a modernidade que nos podem servir.
V.: Está decepcionado com a política da Terceira Via?
U.B.: De início estava muito decepcionado, sobretudo porque tinha a impressão de que era praticada por amadores que, em minha opinião, não tinham compreendido as regras básicas da política. Praticar uma política moderna significa explicar sempre as medidas que se adoptam e conseguir o apoio de uma maioria. A tentativa da velha social-democracia de restabelecer o pleno emprego de acordo com um velho modelo é que me parece ingénua. Em minha opinião, fracassará, porque temos que distinguir entre o pleno emprego, tal como foi concebido até agora, e este pleno emprego frágil que abarca um sector cada vez mais amplo da população. É preciso aceitar os contratos de trabalho flexível, de jornada reduzida, e os trabalhos informais, e isto implica unia estrutura laborai completamente diferente. Os políticos não entenderam de todo o problema da abertura transnacional. Não sei se os sociais-democratas estarão na disposição de solucionar este problema-chave, que não gostaria de ver nas mãos dos conservadores.
V.: O trabalho continua a ser um dos direitos humanos?
U.B.: Sim, e também a construção da sociedade civil. Considero problemática a ideia de que a identidade se constrói em função do trabalho. Temos identidades mais complexas, somos pais ou mães, cidadãos activos. A sociedade moderna deve reconhecer a pluralidade de facetas e organizar a mobilidade de modo a que nos possamos concentrar temporalmente noutros aspectos, seja a família ou o compromisso social, sem passar dificuldades económicas por isso. O trabalho, como actividade laborai regulada, deve desempenhar um papel mais limitado na vida e deve ser repartido de outra forma. Para isso, advogo o trabalho cívico como modelo.
El País/VISÃO
in Revista Visão, 7 de Dexembro de 2000
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